Os recentes atos públicos contra o julgamento político a que foram submetidos dirigentes petistas como José Dirceu e José Genoíno levaram setores da grande imprensa a tentar pautar o Partido dos Trabalhadores e o próprio governo Dilma, sugerindo que não lhes interessaria a defesa de réus condenados, pois eles pertenceriam ao passado.
Todavia
a esquerda, e não só a do PT felizmente tem outra avaliação. A
judicialização da política e a politização da justiça aprofundam
a repressão seletiva contra os movimentos sociais, restaurando
práticas superadas na história do Brasil. A esdrúxula interpretação que
o STF concedeu à assim chamada teoria do domínio do fato poderá e
provavelmente será usada contra o MST, o movimento estudantil, os
sindicalistas etc.
Trata-se de uma inflexão que se põe na contramão do avanço democrático conquistado pelo país desde o fim da Ditadura Militar.
Entre
nós, também a democracia passou a ser vista como um valor universal e
se tornou cada dia mais difícil julgar os opositores segundo critérios
assumidamente políticos. Como também se faz mais difícil manter
políticas econômicas de gerenciamento de crises contra os trabalhadores
por governos eleitos regularmente. Na arena militar tornou-se
contraproducente defender guerras de agressão e de conquista dirigidas
por “Estados Democráticos”.
Para
contornar essas dificuldades, a primeira “solução” encontrada consiste
em ver a economia como se fosse uma organização natural. Assim, as
eleições se limitariam à escolha de gestores com maior ou menor
sensibilidade social. A gestão da economia deveria ser encaminhada por
técnicos e por funcionários de bancos centrais “independentes”.
A
segunda saída dentro da “democracia” levou à retomada do conceito de
guerra justa, praticada supostamente em nome de valores universais. As
guerras contra Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e Palestina foram
“justificadas” a partir dessa doutrina.
A
terceira, e que mais nos interessa no momento, consiste na tentativa
de transformar demandas sociais e políticas em questões similares à da
justiça comum. Trata-se de um retrocesso, até mesmo em relação ao velho
Presidente Washington Luiz, que explicitava o caráter repressivo de
seu governo admitindo que a questão social era caso de polícia. Mas é
também um retrocesso perante as práticas da própria ditadura militar a
qual distinguia presos políticos e comuns.
Cabe
reconhecer que se trata por outro lado, de um avanço da sofisticação
das formas de dominação. Assim como a economia é naturalizada e a
guerra é “humanizada”, a ação política é limitada e penalizada pelo
ordenamento jurídico que se justifica em nome de um suposto conteúdo
“ético”.
Que
o PT e o atual governo tenham se iludido acerca da correspondência
necessária dessas manifestações com a atual fase de desenvolvimento do
capitalismo não nos deve surpreender. Eles fazem parte do sistema no
qual se colocam como polo antitético interno. A atual crise revela mais
uma vez que o capital e seus governos buscam conter a queda da taxa
média de lucro através da destruição de direitos duramente conquistados
pelos trabalhadores. Claro, em nome da racionalidade econômica, da
democracia e do Direito.
Afinal,
ninguém pode reclamar da taxa de juros, posto que ela é um preço que
se autodefine no mercado como qualquer outro. Ninguém deve se insurgir
contra as agressões imperialistas, já que elas são intervenções
humanitárias. E quem vai se levantar para defender “criminosos
comuns”?
Que
um julgamento seja um “marco histórico” justamente com dirigentes do
PT no banco dos réus; que ministros do STF, numa simbiose estranha com
os meios de comunicação tenham cobertura televisiva de celebridades;
que racistas contumazes tenham recentemente descoberto num negro um
herói de ocasião; que o cerne da tese do Procurador Geral da República
seja comprovadamente falsa; que os crimes eleitorais de alguns dos
acusados (graves em si mesmos) tenham se transformado “em maior
atentado à República”; que o Ex-Ministro José Dirceu, contra quem não
se encontrou prova alguma, seja o mais gravemente apenado de todos os
deputados julgados; tudo isso seria cômico se não fosse apenas o
anúncio de uma guerra de extermínio contra a esquerda.
A
maioria do eleitorado rejeitou o uso político de escândalos e
literalmente votou contra o STF. Que juízes em nome de leis
casuísticas possam cassar mandatos populares de pessoas eleitas pelo
povo é um exercício de autoritarismo inédito em nosso país. A atual
configuração da lei eleitoral procura tutelar o eleitor, considerando-o
inapto para exercer seu democrático direito à livre escolha de seus
representantes. Parte-se do primado “iluminista” de que os eleitores
estão mergulhados nas trevas e não conhecem o passado e as ações dos
candidatos. Mas, em nome de que princípio um juiz se arvora o direito
de cassar a vontade popular?
É
evidente que toda justiça corresponde à ideologia dominante, mas ela
deve repelir a violação de ritos processuais que garantem a sua
aparente neutralidade. A politização explícita da justiça cobrará o seu
preço porque a história não para. Chegará o momento de limitar o
mandato dos juízes e exigir sua escolha mediante eleições diretas. Que
se comportem como políticos é mais do que normal. Mas não que sejam ditadores vitalícios.
Sintonia Fina
Lincoln Secco é Professor de História Contemporânea na USP e
autor de “A História do PT” (São Paulo, Ateliê Editorial)
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